Comissionados ao mundo
11/09/2024
Envolver-se ativamente nas atividades da igreja pode nos dar a ilusão de engajamento na missão, contudo podemos permanecer tão alienados da realidade do nosso próximo quanto se vivêssemos em mosteiros domésticos. Por outro lado, a rotina diária da nossa vida pode nos consumir a ponto de nos roubar a capacidade de uma reflexão consciente sobre a nossa vocação cristã e, assim, terminarmos dominados pelo mundo e pelos seus valores contrários ao Senhor. Esses dois quadros nos apresentam uma tensão sobre qual dever ser o nosso relacionamento e engajamento cristão neste mundo caído. Qual deve ser, portanto, a nossa relação com o mundo? Como poderemos conviver com essa tensão de dupla cidadania, paralelamente, a celestial e a terrena?
I. O Senhor Jesus intercede pelos seus
O Senhor Jesus inicia a sua oração sacerdotal (Jo 17) rogando pela sua glorificação (a começar com a sua ressurreição, após a sua morte, o que ocorreria em breve, numa perspectiva histórica e objetiva), algo que seria percebido inicialmente apenas pelos seus discípulos através do contato pessoal que teriam com Cristo ressuscitado. Reconhecer a glória de Cristo pessoalmente é o caminho para o conhecimento de Deus e para a vida eterna e será trilhado por todos aqueles a quem o Pai confia, em vida, ao Filho. Esses haverão de crer no Filho e serão preservados pela Palavra de Deus – a mesma Palavra que eles receberam e através da qual reconheceram Cristo e a sua obra (versos 1 a 8).
Ao longo da oração sacerdotal, percebemos certa sequência cronológica da obra que Deus realiza nos seus, iniciada no nosso resgate do sistema contrário a Deus para uma vida consigo, passando pelo cuidado divino e os benefícios da graça operante em nós, até a nossa vocação no mundo; sendo todo o processo resultado da atuação da Palavra de Deus em nós (versos 9 a 18). E a oração é concluída com Cristo rogando mais especificamente pela unidade da Igreja – incluindo os que creriam em Cristo no futuro – e pela glorificação ao Filho dada pelo testemunho da Igreja (versos 19 a 26).
II. Resgatando no mundo um povo para Deus
Ao interceder especificamente pelos seus discípulos e não por todas as pessoas do mundo, o Senhor Jesus descreveu a sua Igreja como aqueles que lhe foram dados pelo Pai, de quem já eram (verso 9); ele ressaltou a íntima relação e comum propriedade entre o que é dele, o Filho eterno, e o que é de Deus, o Pai celestial, afirmando que ele, Cristo, era glorificado nesse povo especial (verso 10). Cristo, por estar a retornar aos céus em breve, rogou a Deus Pai que ele guardasse esse seu povo unido em torno dessa fé nele, que os resgatou (verso 11), terminando por afirmar que ele, o Filho, havia preservado todos aqueles que em vida lhe foram dados, deixando perder-se apenas aquele cujo destino de perdição já havia sido profetizado nas Escrituras Sagradas (verso 12).
Dessa parte da oração sacerdotal do Senhor Jesus, destacamos um mistério glorioso, que é o fato de que Deus tem no mundo um povo especialmente preparado para si, o qual vem sendo entregue por intermédio das Escrituras (2Ts 2.13,14) pelo Pai ao Filho para, através deste, ser conduzido mediante a fé àquele a quem eles pertencem, o Pai celestial; e através desse resgate e da comunhão resultante do ajuntamento desse povo de Deus, o seu Filho Jesus Cristo é glorificado. Há um relacionamento poderoso entre Pai e Filho nessa obra redentora, efetivado pela ação do Espírito Santo, demonstrando a Trindade em ação.
Eis um mistério (Rm 16.25-27; Ef 3.5,6) porque ninguém sabe e nem há como saber antecipadamente quantos, quem ou quando essas pessoas escolhidas por Deus são resgatadas do mundo para a vida com o Senhor, passando conscientemente assim a ser parte da Igreja. Sabemos qual é o meio usado por Deus para realizar esse resgate: a sua Palavra (At 13.48), mas ainda nos é oculta a percepção inequívoca da genuína conversão espiritual resultante do anúncio da mensagem da cruz (Ef 1.11-13; 1Co 1.21). Apesar de glorioso, esse processo eficaz de eficiente resgate de pecadores presentes no mundo, para um majestoso projeto de vida que lhes está destinado por Deus (Ef 1.4,5), só vai sendo entendido, recebido e vivenciado à medida que, junto com outros redimidos, esse povo de Deus vai crescendo na fé bíblica (Ef 5.26,27) e na comunhão espiritual com o seu redentor e com os seus irmãos de fé em Deus, o qual resgata, transforma e santifica, ainda no mundo, um povo para o louvor exclusivo da sua glória (Is 43.6,7). Sendo assim, podemos afirmar que no mundo, a Igreja é resgatada para Deus.
III. Desfrutando no mundo o gozo e a proteção divina
Desde que foram salvos por Deus, os convertidos, fruto da missão da Igreja, passam a também compô-la e iniciam a sua jornada de fé, enfrentando as dificuldades da vida cristã ao lutar contra o próprio pecado e contra um sistema caído que se opõe a Deus. Cristo já nos advertira que assim como ele enfrentou oposição neste mundo, os seus discípulos também a enfrentariam (Jo 15.18-20) e que sofrer por amor e honra a ele é uma bênção (Mt 5.10-12) – um sofrimento diferente daquele fruto do nosso próprio erro (1Pe 2.19,20). Há um certo elemento poderoso e certamente sobrenatural nesse testemunho de firmeza no evangelho em meio a tribulações, isso é, uma marca de que fomos resgatados da impiedade do mundo para algo glorioso (1Pe 2.21,25), que está além dele. Só conseguimos resistir às nossas lutas espirituais porque o próprio Deus impõe limites à ação infernal (Mt 24.21,22) e as nossas próprias tentações (1Co 10.13), por isso, não devemos fugir do mundo e nos esconder em guetos, pois nem nos livraríamos do mal que nos acompanha internamente (Tg 1.14,15; Hb 12.3,4), nem cumpriríamos missão alguma.
Para sermos eficientes na vida cristã, o Senhor Jesus nos alerta contra a ansiedade, pois Deus cuida dos seus (Mt 6.25,27; 1Pe 5.7) até quando não percebem (Sl 127.2). É devido à certeza desse cuidado paternal, presente na Igreja (Sl 37.4,5), que podemos ter a serenidade necessária para buscar o reino de Deus em nossa vida (Mt 16.33,34). Deus não apenas confirma em nós esse cuidado paternal (Rm 8.16), como também enche o nosso coração de gozo (Sl 22.8; Rm 15.13) à medida que estreitamos a nossa relação com Cristo (2Pe 3.18). A vida cristã tem o seu ideal de conduzir toda a nossa existência para a glória de Deus, do início ao fim (Rm 14.8), das coisas pequenas (1Co 10.31) às grandes (Jo 21.19), pois no Senhor encontramos o prazer maior da nossa vida (Sl 73.25,26), quando estamos espiritualmente saudáveis. Essa vocação nos seria impossível se não tivéssemos sido transformados espiritualmente (Ez 36.26,27); pois é somente devido a essa nova natureza que o cristão tem gozo nas coisas de Deus (Sl 1.2; 119.47). Nós, que fomos atraídos eficazmente pelo amor de Deus (Jr 31.3), desenvolvemos verdadeiro amor por ele (1Jo 4.19), motivo porque conseguimos vencer o mundo, ou seja, por intermédio da nossa fé (1Jo 2.2-5). Sendo assim, podemos afirmar que, no mundo, a Igreja tem gozo e proteção divina.
IV. Desenvolvendo no mundo a santa vocação
A vocação cristã está relacionada ao nosso destino eterno, o que significa vivermos no mundo com a eternidade com Deus em perspectiva (Cl 3.1-4). Para desenvolvermos essa gloriosa vocação, opera-se em nossa vida uma ação eficiente da graça de Deus que se reflete em nossos esforços consequentes (1Co 1.2; Hb 10.14). A isso chamamos processo de santificação, o qual embora seja uma graça que Deus opera em nós (Fp 2.13) através da obra objetiva do seu Filho (1Co 6.11; 1Pe 2.24,25), desenvolve-se pelas nossas ações de busca desse projeto de Deus para nós (2Tm 2.21), pois nele não somos meros expectadores, mas atuantes engajados que sincera, prazerosa e verdadeiramente buscam compreender e realizar o projeto de Deus na própria vida e na vida dos outros como uma expressão sincera do nosso amor e gratidão ao salvador (Dt 10.12,13; 11.1).
Visto que essa vocação vem sendo buscada e vivenciada por todos aqueles que Deus tem alcançado ao longo da história, a cada geração, aqueles que já foram alcançados precisam assumir a responsabilidade de dar continuidade a essa vocação gloriosa nos seus próprios dias. Não basta preservar os que já estão em aliança com Deus, confirmando-os na fé (Cl 2.6,7), nem nos empenharmos para que os nossos descendentes também se confirmem nessa vocação (Gn 17.7; Dt 6.2,5-7; 32.46); é preciso também ir buscar aqueles que estão fora da aliança, mas foram preparados por Deus para entrar nela (Rm 9.23-26).
A consciência dessa vocação missionária da Igreja não apenas estava no coração do apóstolo Paulo (At 22.12-16) e se refletia na sua prática (At 13.46-49), mas também deve estar presente na vida de todos nós cristãos que temos sido doutrinados corretamente pela Palavra de Deus (2Tm 3.16,17), pois a vocação cristã é para que toda a nossa vida reflita a todas as pessoas o evidente poder que o evangelho tem de santificar pecadores (Tt 2.11-14), o que é apenas iniciado na salvação. Tal poder do evangelho deve nos levar ao empenho ousado de um testemunho cristão integral, tanto através das nossas palavras, quanto através das nossas atitudes (1Pe 2.9-12); esse testemunho deve ser dado ao mundo inteiro, para que universalmente a glória de Deus em resgatar vidas seja reconhecida por todos e o seu glorioso nome seja honrado e glorificado na vida daqueles que o Senhor já preparou para si. Sendo assim, no mundo, a Igreja desenvolve a sua santa vocação.
Comissionados por Cristo e com Cristo
No coração da oração sacerdotal do nosso Senhor pela sua Igreja está o seu pedido em favor do nosso desenvolvimento vocacional no meio do mundo, onde, em meio a lutas e pecados, nossos e dos outros, Deus resgata a sua Igreja, a santifica, protege e lhe dá um novo prazer e razão de viver. Ser parte do povo de Deus, buscando viver no mundo para manifestar a glória dele através do resgate de pecadores e formação de uma santa geração, é precisamente a nossa vocação, e estender o alcance desse objetivo até os confins da terra é a extensão missionária dessa vocação, em cumprimento do que disse Cristo em João 20.21: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”.
Rev. Raimundo Montenegro
Publicações recentes:
Rev. Luiz e Rachel
Cartas de Missionários
Ana Karina
Cartas de Missionários
Tábata Mori
Cartas de Missionários
Rev. Ronaldo e Fabiana Dourado
Cartas de Missionários