Cultura: Diferenças ou Superioridade?
20/03/2025
Ao estudar a disciplina de Missiologia Fundamental, deparei-me com um problema que para muitas pessoas parece invisível, no entanto, é uma realidade presente no dia a dia de muitos missionários espalhados pelo mundo. Eu me refiro ao etnocentrismo. Nós, seres humanos, temos uma facilidade muito grande de interpretarmos a realidade de acordo com os nossos parâmetros ou de acordo com os parâmetros da nossa cultura. O Rev. Marcelo Carvalho em seu livro Antropologia para Missionários, define etnocentrismo como um julgamento de que o nosso povo é o melhor, o mais coerente em suas ações, com os melhores costumes, as melhores práticas, leis, mores e normas e, portanto, superior a qualquer outro povo. Essa definição me lembra uma discussão em sala de aula sobre o comportamento de missionários brasileiros na Europa. Muitos missionários brasileiros, durante o processo de aculturamento, ao invés de observar a cultura visando aprender e entender a melhor forma de apresentar o Evangelho, já chegam propondo “ideias mirabolantes”, supondo que já sabem de tudo e que possuem soluções para todos os problemas. Na minha opinião, isso acontece também por causa do etnocentrismo.
Recentemente, eu li um artigo com o título: “Notas para o etnocentrismo” de Egon Schaden, e percebi com clareza um grave problema na afirmação que o autor destaca logo no início do seu artigo: “todos nós temos a tendência de dividir os habitantes da terra em dois grupos: nós e os outros”. Em muitos momentos, colocamos o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa cultura como o centro de todas as coisas. Assim como numa discussão entre torcedores de times de futebol que colocam suas opiniões e razões para justificar o fato de torcerem pelo time A ou pelo time B, nós também apresentamos diversas justificativas para dizermos que a nossa cultura é melhor que a cultura do outro, ou que os nossos valores e padrões morais são superiores em relação a uma nação menos desenvolvida. Neste artigo, Egon Schaden apresenta diferentes formas de etnocentrismo, mesmo reconhecendo que não é fácil estabelecer uma classificação satisfatória. O emprego daquilo que conhecemos como etnocentrismo pode ser aplicado numa família, numa comunidade religiosa, numa cidade, numa classe social, entre outros. Schaden também fala sobre etnocentrismo tribal, e este, por exemplo, pode ser observado entre os indígenas no Brasil. Temos como exemplo os Kaduveo (tribo indígena do sul do Mato Grosso) que acreditam ter sido criados para dominar outras tribos, e durante muito tempo viveram de acordo com essa convicção. Quantas histórias conhecemos de povos antigos que se consideravam superiores a outros povos por causa da sua cultura? Temos exemplos bíblicos que nos mostram isso: os judeus se consideravam superiores aos gentios. Os gregos se gabavam por sua rica tradição filosófica e acreditavam ser uma etnia especial. Imagino as perguntas feitas pelos espanhóis e portugueses ao se depararem com os indígenas nas Américas: será que eles têm almas? Será que eles são humanos? Será que eles têm corpos? Será que são espíritos?
O preconceito racial também é uma forma de etnocentrismo. Shaden diz o quanto é errôneo a frequente afirmação de que o preconceito de etnia só existe nas sociedades civilizadas. É muito comum a discriminação por causa das diferenças físicas entre os povos primitivos. No relatório de uma viagem à África feito por Mungo Park no século XVIII, disse que numa aldeia em que visitou, os aborígenes quiseram cegá-lo porque ele tinha olhos de gato. Isso nos mostra que cada um enxerga, interpreta e conceitua o “outro” a partir da sua própria realidade, da sua própria lente. O antropólogo Peter Rivière disse que o etnocentrismo é a atitude que consiste em julgar as formas morais, religiosas e sociais de outras comunidades de acordo com as nossas próprias normas. Analisando esta definição apresentada por Rivière, só podemos chegar a uma única conclusão: o etnocentrismo precisa ser evitado a qualquer custo. Lidório, em seu livro Konkombas, destaca outro grande desafio para os missionários transculturais, que é a necessidade de entendermos que a mensagem do evangelho não é uma proposta importada para a cultura-alvo, mas uma resposta (supracultural, mas culturalmente aplicável) de Deus para homens de todas as culturas em todas as gerações, respondendo às questões mais profundas de cada coração. Por este motivo, Lidório argumenta ser profundamente importante percebermos quais são as “perguntas” que desafiam a sociedade-alvo antes de começarmos a expor as respostas. Na falta de entendimento do sentido do evangelho, poderá nascer uma igreja imatura que dificilmente experimentará um crescimento normal e que não conseguirá transmitir o evangelho de uma maneira que faça sentido ao restante do grupo. Por isso, Lidório recomenda que, para avaliar o impacto do evangelho em um grupo que vive no contexto animista , há três questões que deveríamos tentar responder:
1 - Será que eles percebem o evangelho como sendo uma mensagem relevante em seu próprio universo?
2 - Eles entendem os princípios cristãos em relação à cosmovisão tribal?
3 - Eles aplicam os valores do evangelho como respostas para os seus conflitos de vida?
Essas perguntas que o Rev. Ronaldo Lidório lança sobre nós, leva-nos a pensar e nos ensina a termos empatia e respeito por outras culturas e a esperarmos o momento certo para apresentarmos o evangelho de Cristo.
Marcelo Carvalho diz que, ao entrarmos em contato com outra cultura, ela já está toda pronta. Ela já possui respostas e pontos sólidos e outros nem tanto, mas que nos dão o aporte suficiente para compreender o homem, o mundo e viver nele. Assim, quando entramos em contato com outra cultura, precisamos admitir o fato de que as práticas e as crenças de determinado povo são suas verdades absolutas, ainda que supostamente firam a revelação bíblica. Ele advoga aqui que devemos chegar o mais próximo possível de quem de fato é “o outro” e observar a sua cultura a partir da perspectiva dele. É claro que não será possível entendermos sua cultura totalmente, mas precisamos chegar o mais perto possível de como esse povo interpreta o mundo, a própria vida e dá significado aos elementos. Isso é importante para que consigamos transmitir o evangelho de forma mais efetiva. Me recordo das aulas com o Rev. Cácio Silva (Executivo Operacional da APMT). Ele sempre falava do nosso “ponto cego”, referindo-se aos erros que não conseguimos enxergar em nós mesmos. Muitos missionários americanos confundiram seus ideais e valores de classe média com os princípios do cristianismo. Seus pontos de vista sobre moralidade, respeitabilidade, ordem, eficiência, individualismo, profissionalismo, trabalho e progresso tecnológico, tendo sido batizados muito antes, foram exportados, sem escrúpulos, aos confins da terra. Estavam, logo, predispostos a não apreciar as culturas das pessoas com quem conviviam.
Justo González, em seu livro “Cultura e Evangelho”, argumenta sobre o papel dos cristãos diante de outra cultura. González diz que devemos tratar a outra cultura com respeito, como um lugar sagrado no qual a autoridade de Jesus já é exercida, embora as pessoas que estão ali não o saibam. González cita como exemplo os primeiros cristãos que conseguiram abrir caminho no mundo greco-romano e deram origem a uma igreja que, sendo semita em sua origem, logo se arraigou e se encarnou nessa outra cultura. O autor também faz alusão à descoberta da nossa terra pelos cristãos europeus. Dizendo que, se eles tivessem visto os indígenas não como pessoas desencaminhadas pelos demônios, mas como povos e culturas nas quais o verbo de Deus já estava presente. Certamente, em vez de destruir os antigos códices, os teriam estudado para ver o valor que havia neles. Poderiam ter apreendido, por exemplo, remédios com os nossos antepassados que teriam salvado muitas vidas em todo o mundo; teriam aprendido as observações astronômicas que a Europa ainda não havia realizado; teriam aprendido como cultivar a terra de modo a poder continuar sustentando a população. Talvez tivessem aprendido quanto à vida eclesiástica, que não é necessário adorar a Deus sempre em latim. E assim teria surgido uma igreja verdadeiramente arraigada em nossas culturas e, depois, nas novas culturas que iam nascendo com o passar do tempo e com os encontros com outras culturas.
Concordo com o Rev. Ronaldo Lidório sobre a piedade na missão. No livro, com o título “Teologia, Piedade e Missão”, diz que, à medida que experimentamos uma vida verdadeiramente transformada pelo Evangelho, nossas vidas são usadas por Deus para atrair outras pessoas a Jesus Cristo. Estamos sendo observados a todo momento, principalmente quando estamos inseridos numa outra cultura. Nossas ações, palavras, brincadeiras e até mesmo o silêncio são observados. Lidório diz que é nessa observação que daremos testemunho de uma vida transformada por Cristo, ou não. É nessa observação que olharão para o nosso procedimento e entenderão que algo inumano aconteceu em nossas vidas. Um dos maiores desafios dos missionários não é andar na contramão do mundo, mas andar na contramão do nosso coração. Angola é um país de língua portuguesa e possui muitas afinidades com o Brasil, mas os desafios em relação às mudanças culturais são enormes. A minha maior preocupação em relação à minha atuação no campo não é a de ter que apresentar um relatório de sucesso para a agência e para os meus parceiros mantenedores, mas o cuidado que eu preciso ter para não cair no “problema do etnocentrismo”.
Ao ler o artigo do Schaden, fiquei muito surpreso com o que ele chamou de “etnocentrismo culinário”. Eu sempre converso sobre este assunto com a minha esposa, dizendo a ela que a nossa casa em Angola não pode ser uma “pequena Embaixada do Brasil”, quero dizer, que não podemos transformar o nosso lar naquele país num “cantinho brasileiro” que irá nos proteger das diferenças culturais presentes ali. Não podemos ter nojo ou até mesmo evitar os hábitos alimentares de Angola por serem diferentes do nosso padrão alimentar brasileiro. Schaden diz que essa reação fisiológica de nojo, por mais insistente que seja, é condicionada culturalmente e devida aos laços afetivos que nos ligam à nossa “segunda natureza”, aos hábitos, enfim, que integram a nossa personalidade. O artigo do Schaden abriu a minha mente e me fez enxergar um problema que certamente dificulta o trabalho de muitos missionários, o etnocentrismo. Tentar compreender outra cultura através das nossas lentes nos apresentará uma realidade deturpada em relação à sua imagem original e, consequentemente, teremos uma grande dificuldade no processo de aculturamento em relação ao nosso trabalho numa cultura que apresenta padrões tão diferentes em relação aos nossos padrões culturais. Com isso, chego à conclusão de que a única forma de combatermos esse problema chamado etnocentrismo é aprendendo verdadeiramente a amar o próximo.
Rev. Ricardo Narciso
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