
Um dia encontrei um grupo Yuhupdeh num acampamento de pesca, nas margens de um rio no interior da floresta, a um dia da pequena cidade mais próxima. Lembrei-me que meu primeiro contato com eles, em 2006, foi naquelas imediações, também num acampamento, e me chamou atenção a simplicidade da vida. Eles tinham uma lona para se protegerem das fortes chuvas e uma rede para não dormirem no chão úmido. O peixe que pescavam era moqueado num jirau e comido como uma iguaria. Frutas coletadas ali por perto completavam o cardápio e pronto. Era só isso. E o interessante é que conversávamos com risos e gargalhadas. A despeito do quase nada, estavam todos supridos e alegres com a fartura de peixe e disponibilidade de frutas.
A origem das “necessidades”
A Palavra afirma que nossas mazelas de alma têm origem nos desejos do coração e estes se processam até gerarem morte (Tg 1.14,15; 4.1). Paul Tripp sugere que esse processo se desenvolve numa escala quase previsível. Transformamos desejos (“eu quero”) em “necessidades” (“eu preciso”), estas em expectativas (“você deveria”), estas em exigências (“você tem que”), as exigências não raramente resultam em desapontamentos (“você não fez”) e às vezes em autocomiseração (“pobre de mim”). Olhando para meu próprio coração, percebo que muito do que minha boca verbaliza como “eu preciso, eu necessito”, de fato no meu coração é “eu quero, eu desejo”. Da mesma forma que verbalizado como “eu não consigo, eu não posso, eu não aguento”, de fato no meu coração é “eu não quero, eu não desejo”.
As verdadeiras necessidades
Abraham Maslow propôs, e para a sociedade se tornou quase uma verdade inquestionável, que temos uma escala de necessidades: fisiológicas, de segurança, de amor, de estima e de autorrealização. E a não satisfação das mesmas resultaria numa distorção da nossa autoimagem. Bem, Paulo parece ratificar apenas as necessidades mais básicas: “tendo sustento [comida] e com que nos vestir, estejamos contentes” (1 Tm 6.8). E, antes dele, o próprio Cristo já havia reconhecido como necessidades legítimas a comida (subsistência) e as vestimentas, acrescentando ainda que mesmo essas não devem ser o foco do nosso coração, nos desafiando a buscarmos em primeiro lugar o Seu reino e a Sua justiça, pois essas necessidades nos serão acrescentadas (Mt 6.25,32,33).
O grande provedor
Jesus afirma que “Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais” (Mt 6.8) e Paulo acrescenta que este Deus, “segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (Fp 4.19). A verdade é que, novamente nas palavras do Mestre, “pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte [Ele próprio], e esta não lhe será tirada” (Lc 10.42). Nós não necessitamos de quase nada e com esse pouco que realmente necessitamos não precisamos nos preocupar, pois Aquele que cuida dos pássaros e dos lírios é o bom pastor que nada nos deixará faltar (Sl 23.1).
Legítimos, mas excessivos
Os desejos mais perigosos são aqueles legítimos, porém, excessivos. É justo desejar felicidade, é legítimo querer qualidade de vida, é razoável buscar conforto, é digno esperar sucesso no trabalho ou no ministério, e é perfeitamente aceitável sonhar em ter filhos e uma linda família. O problema é quando desejamos tanto esses “bens” que nos cegamos para a vontade do Criador, que frequentemente nos chama para a renúncia, abnegação e sacrifício. O problema é quando desejamos as bênçãos de Deus mais do que o próprio Deus. Enganoso é o coração do homem. No campo missionário e na vida, facilmente nos tornamos descontentes ao transformarmos os mimos de Deus em exigências, seus atos de bondade em requisitos, o conforto em condicionante. Sutilmente fazemos da autorrealização o foco da nossa alma, desenvolvemos mais expectativa do que gratidão, passamos a ver o amor como troca ao invés de doação, o amar como receber ao invés de dar. Deixamos nossas “necessidades” fabricadas ofuscarem o incomparável privilégio de servir a Deus.
Fabricando necessidades
Necessidades fabricadas, sim. Muitas das nossas “necessidades” são artificiais, fabricadas pela sociedade, pelas grandes corporações da tecnologia, pelos modismos do momento, e todas elegidas por nós mesmos como essenciais. Passados alguns anos, vejo os Yuhupdeh que conheci contentes no seu “quase nada” da floresta, agora queixosos com o “quase tudo” da cidade. Com a monetarização das aldeias através do Bolsa Família, auxílio maternidade, aposentadoria, salário de professor e agente indígena de saúde, a dinâmica sociocultural tem mudado rápida e drasticamente.
O remo foi substituído pelos pequenos motores, o ralo artesanal de mandioca foi substituído pelo ralador elétrico e as cessões de histórias contadas pelos velhos substituídas pela televisão. Naturalmente, essas soluções trazem conforto por um lado, mas fabricam novas necessidades por outro, como gerador de energia, gasolina, frequentes viagens para a cidade e a inevitável relação com o comércio e suas mazelas. Ouço aqueles amigos indígenas, que antes se gabavam de ter tudo o que precisavam na floresta, agora lamentando que o Bolsa Família não é suficiente nem para a gasolina da viagem, que o comerciante é corrupto, que o governo lhes dá esmolas, que os brancos têm motores com 40 hp (potência) enquanto os deles são de apenas 5,5.
Claro que eles são livres e têm razão em buscar conforto. Eles são como nós, que em cada nova solução nos vemos com novas e múltiplas “necessidades”, que nos distanciamos cada vez mais da simplicidade da vida, que nos tornamos a cada dia mais complexos, mais exigentes, e somos vitimados por nossas próprias exigências. Ou, melhor dizer, vítimas dos nossos próprios desejos. E uma das consequências mais desastrosas é que o descontentamento se instaura de forma sutil, mas arraigada em nossos corações.
A causa das ansiedades
No fundo, nossa ansiedade pelas coisas da vida, seja por desejo intenso de ter ou por medo inquietante de perder, resultam de processos sutis de incredulidade do coração. Sabemos racionalmente que Deus é nosso criador, dono e cuidador. Sabemos que Ele é soberano e controla todas as coisas. Que seu amor por nós é indizível e suas misericórdias não têm fim. Sabemos, mas no fundo não cremos. Pelo menos não cremos o suficiente para sossegar o coração e descansar a alma, na certeza de que Ele proverá todo o (de fato) necessário. Sem Sua provisão, “inútil vos será levantar de madrugada, re- pousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem” (Sl 127.2).
Coração caído
Quantas vezes meu coração se viu tentado (e às vezes tomado) pelo descontentamento por falta de uma água gelada na aldeia, de uma Internet melhor na cidadezinha do interior amazônico ou de um meio de transporte mais adequado. Por querer privacidade, ao invés de multidão; respeito, ao invés de invasão; descanso, ao invés de algazarra; encorajamento, ao invés de admoestação; elogios, ao invés de contestação. Coração mesquinho e auto-amante esse meu! Não vê que nada disso se compara ao privilégio de pertencer a Deus e de servi-lo?!
Será que os verdadeiros motivos das nossas angústias, ansiedades, descontentamentos e até adoecimentos são mesmo necessidades não supridas? Ou são desejos não realizados?
Alegremo-nos no Senhor, na sua vontade, naquilo que Ele colocou em nossas mãos, e nos sentiremos satisfeitos, saciados, realizados (Sl 37.4), pois veremos que a vontade de Deus é melhor que os nossos desejos, seus sonhos são maiores e melhores que os nossos, seus caminhos são perfeitos (Is 55.8,9) e sua vontade é boa e agradável (Rm 12.2).
Cácio SIlva