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O Cuidado Mútuo na Missão

25/06/2025

“Eles têm sido o meu lenitivo” (Cl. 4:11b)

Era setembro de 1996 e já estávamos cansados depois de duas transições culturais com três crianças pequenas. Em menos de um ano já havíamos passado por duas transições culturais, chegando em Moçambique há seis meses. O país dava os primeiros passos rumo à reconstrução, após duas longas guerras, a independentista (1964 a 1974) e a civil (1977 a 1992). A situação pós-guerra era de absoluta miséria, tornando o trabalho missionário ainda mais desafiador. Aproveitamos o recesso das aulas no instituto bíblico na cidade da Beira para sairmos por cerca de 15 dias a fim de descansar com a família em casa de amigos em Bulawayo, Zimbábue. No trajeto sofremos um grave acidente, do qual ainda lidamos com sequelas. Sabemos que no campo missionário enfrentamos muitas lutas. Particularmente não tenho dúvidas que superamos as lutas no campo porque Deus, na Sua providência, proveu cuidado através de irmãos nacionais e por meio de missionários colegas de agência, bem como, irmãos de outras agências e denominações.

Por definição, cuidado mútuo é o “cuidado resultante da compaixão à qual os crentes são encorajados a praticar na relação uns com os outros”, no contexto da comunidade dos salvos, a igreja. Trata-se de um “conceito amplamente enraizado nos ensinos do Novo Testamento, onde a igreja é retratada como um corpo de crentes que se apoiam mutuamente e sustentam um ao outro na fé, amor e necessidades práticas”. Tanto o ensino de Jesus quanto o dos apóstolos nos fornecem amplo embasamento bíblico. Jesus o apresenta como um “novo mandamento” dizendo: “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis” (Jo 13.34).

Paulo elabora ainda mais esse conceito. Aos Gálatas ele afirma: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6.2). Ou seja, ele evoca exatamente o “novo mandamento” de Cristo. Em diversos momentos de sua vida e ministério, o apóstolo enfatiza a necessidade e a importância do cuidado mútuo no corpo, sobretudo em relação àqueles que dedicam suas vidas na proclamação do evangelho. Ele apresenta uma longa lista de cooperadores em Romanos 16, expressando gratidão pela cooperação e os encorajando ao acolhimento mútuo. Aos Efésios escreve dizendo: "Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo” (Ef 4.32). Aos Coríntios ele diz: “De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele” (1 Co 12.26).

Na carta aos Colossenses, escrita por volta do ano 62 A.D. durante sua prisão em Roma (At 27-28), juntamente com Aristarco - como nos é sugerido em Cl 4.10, Paulo segue o seu padrão de escrita. A inicia com uma palavra de saudação, seguida de agradecimentos e, então, o corpo - a apresentação do “problema” (assunto) teológico - e, por fim, encorajamento aos seus destinatários, concluindo com as saudações finais.

Paulo toma conhecimento, por meio de Epafras, que a igreja de Colossos estava abandonando o ensino sobre a suficiência de Cristo e abraçando outro evangelho, isto é, aderindo ao ensino de falsos mestres. Em resposta, Paulo escreve àqueles irmãos em defesa da sã doutrina, apresentando Jesus Cristo em toda a Sua glória, declarando que Ele é a imagem do Deus invisível. Assim como no período da Reforma, em que é enfatizado o “Solus Cristus” como um dos cinco “SOLAS”, Paulo busca reposicionar a igreja na verdade. Ele defende que nenhuma outra pessoa, conhecimento ou sistema é necessário, além da pessoa e obra de Cristo. Podemos ver que se trata de um perigo recorrente na história.

Ele conclui a carta encorajando os irmãos a se manterem fieis ao Senhor e à sã doutrina. Orienta-os a que se mantenham vigilantes todo o tempo e em constante oração, inclusive por ele para que se lhes abram as portas para a proclamação “do mistério de Cristo”, motivo pelo qual se encontra algemado. Em seguida pede que sejam sábios para com os que são de fora, para com aqueles que ainda não conhecem a Cristo como Salvador e Senhor de suas vidas. Para tanto, precisam ter uma palavra “sempre agradável, temperada com sal”, a fim de que saibam “como responder a cada um” (Cl 4.2-6).

Entre os versos 7 a 18 do capítulo 4 ele aponta para a importância do cuidado mútuo na caminhada cristã, sobretudo no contexto da obra missionária. Estava certo de que a sua situação na prisão causava apreensão e angústia em toda a comunidade cristã da época. Assim, faz questão de tranquilizá-la informando que suas testemunhas oculares, “Tíquico, o irmão amado, e fiel ministro, e conservo no Senhor” e “Onésimo, o fiel e amado irmão, que é do vosso meio”, hão de esclarecer em primeira mão acerca de sua real situação.

No verso 8 Paulo enfatiza que estes irmãos estão sendo enviados “com expresso propósito de vos dar conhecimento da nossa situação e de alentar o vosso coração”. Apesar da condição desconfortável, vivendo como presidiário, sua preocupação parece apontar muito mais para o bem-estar dos seus destinatários do que o seu próprio. Aqui, também, ele evidencia o princípio do mútuo cuidado. Estava ciente que sua situação exigia cuidados dos de fora e reconhece que tem sido alvo desse cuidado por parte daqueles irmãos, aos quais agora se dirige ciente de que, também eles, precisavam de cuidado. Portanto, não somente ele, Paulo, mas, também, seus destinatários precisavam ter seus corações “alentados” ante à sua condição de prisioneiro, bem como, diante das perplexidades que as perseguições causavam nos crentes em geral.

Nos versos 10 e 11 ele reforça a ideia da mutualidade no cuidado, ao recomendar acolhimento a João Marcos. Depois disso ressalta “Jesus, conhecido por Justo”, juntamente com Aristarco e João Marcos, como os únicos judeus convertidos a cooperarem pessoalmente com ele “pelo reino de Deus”. Paulo se refere ao cuidado recebido da parte destes irmãos, descrevendo-o com um termo atribuído ao Espírito Santo de Deus. Ele emprega um substantivo derivado do verbo “consolar”, referindo-se àqueles amados irmãos como o seu “lenitivo”. Ou seja, Paulo afirma que “Eles têm sido o meu lenitivo” ou “conforto”. Lembremos da afirmação de Jesus em João 14:26 quando diz que em Seu nome o Pai enviaria o Espírito Santo, para ser o nosso “Parakletos”, o nosso “consolador”, o nosso “ajudador”.

O princípio do cuidado mútuo é apresentado pelo apóstolo, também, nos chamados “mandamentos de mutualidade”, os quais aparecem em diversos dos seus escritos, assim como em outros escritos do Novo Testamento. O propósito destes mandamentos não é outro senão o crescimento e o fortalecimento do corpo em meio aos desafios que acompanham a igreja de Jesus em sua caminhada de testemunho no mundo quebrado em que vive. Eles expressam, de maneira prática, aquilo pelo qual Jesus intercedeu na oração sacerdotal conforme João 17, isto é, a unidade da igreja, “para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21).

Trata-se do ideal bíblico para cada cristão, individualmente, e para toda a igreja enquanto corpo de remidos, mas, sobretudo, para a comunidade missionária. Reconhecemos, entretanto, que assim como em outras áreas da vida, nossas fraquezas humanas muitas vezes nos impedem de vivermos continuamente esse ideal de Deus. A solução está em procurarmos viver pela graça, somente, como sempre deve ser a vida do crente. O Bible Hub ao comentar o tópico salienta que os “cristãos são encorajados a depender do Espírito Santo para que tenham força e direcionamento no cultivo de uma vida comunitária marcada pelo amor e pelo cuidado mútuo”.” Pedro nos orienta: “Mas, sobretudo, tende ardente amor uns para com os outros; porque o amor cobrirá a multidão de pecados” (1 Pe 4.8).

O cuidado mútuo é, sem dúvidas, um “aspecto vital à vida cristã, o qual reflete tanto o amor de Cristo, quanto a unidade da igreja. O mútuo cuidado é um chamado aos cristãos para se envolverem ativamente na vida uns dos outros, oferecendo apoio, encorajamento e amor de maneira prática”. O fato é que precisamos ser parêgoría ou lenitivo na vida uns dos outros, em especial na vida daqueles que são chamados e separados por Deus para o trabalho missionário. Que cada vez mais sejamos despertados para o cuidado mútuo e que essa reciprocidade no cuidado se torne cultura na vida e caminhada missionária, a fim de que sejamos mutuamente assistidos e a Sua glória seja vista entre nós.

Gessé Almeida Rios
Coordenação de Cuidado Missionário
[email protected]

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